A melhor definição que conheço de racismo não está nos livros acadêmicos nem no voto dos ministros do Supremo Tribunal Federal. Está no romance autobiográfico “À Mão Esquerda”, de Fausto Wolff (1940-2008).
É uma patada no estômago: em certo momento do livro, Wolff escreve sobre o dia em que o pai, barbeiro, atendeu uma família de negros em seu salão em Santo Ângelo (RS). Foi um fiasco: parecendo nervoso, o pai errou o corte, provocou talhos, falhas, picotou orelhas e se mostrou bem pouco simpático.
Ao ver os clientes sair, Wolff, ainda menino, comentou que nunca o vira trabalhar tão mal. Era proposital, explicou o pai. Era necessário tratar mal essa clientela, ainda que não fosse (jurava) racista.
A lógica era: se eles gostassem do serviço, voltariam; em pouco tempo, o salão ficaria marcado por ser um espaço aberto para negros; e os brancos que tinham dinheiro, grosso da clientela, ficariam incomodados, pois não gostariam de frequentar um lugar assim; e, se os brancos fugissem, o barbeiro não teria dinheiro para colocar o prato na mesa da família. Simples assim.
Ou seja: o racismo dos outros justifica a discriminação preventiva, ainda que todos sejam iguais perante a lei. E como provar que o serviço mal prestado era motivado por racismo? Impossível. Nas esferas do micro-poder, a discriminação é sutil, mas opera violentamente.
Num país de 190 milhões de habitantes, é humanamente impossível vigiar os processos de exclusão manifestados contra grupos minoritários (sempre considerando como “minorias” os grupos que tiveram negados, ao longo da História, o acesso à totalidade dos direitos civis, sociais, políticos). Mas é dever do Estado criar regras para garantir acesso a lugares públicos, como a universidade.
Imagino, enquanto escrevo este post, quantas pessoas deixaram uma hora dessas as barbearias com as orelhas podadas por tesouras a zelar pela reputação do recinto. Não duvido que sejam muitos. Nas barbearias, nos shoppings centers, nos aeroportos, nas delegacias, nos bancos.
O Brasil, como a Argentina, as Coréias e o Afeganistão, é um país de preconceitos. Preconceitos de classe, de origem, de orientação sexual e de raça. O que significa: o sujeito pode ser honesto, talentoso, até endinheirado, mas levará sempre um “porém” ao lado do nome. “É um sujeito inteligente, mas bicha”. Esse “porém” é uma tesoura a serviço do boicote.
Por aqui, ao longo dos anos, tentou-se de todo modo, com leis, campanhas educativas e regras de convivência, banir o preconceito nas relações pessoais. Ainda assim, em pleno ano 2012, a exclusividade do acesso a determinados nichos e espaços mostra apenas que só o discurso foi atingido, quando muito. Admitir ideias pré-concebidas sobre determinado grupo pode soar mal, criar embaraço, constrangimento, e até problemas com a lei. Mas não elimina a ideia pré-concebida (quando muito, apenas a manifestação pública dela. Quando muito mesmo). E a ideia pré-concebida é só a etapa inicial de uma ação perversa.
O julgamento no STF sobre a legalidade dos sistemas de cotas nas universidades públicas foi uma dessas oportunidades de se colocar em discussão e evidência a herança de séculos de injustiça justificada aos olhos da lei.
Não que o sujeito a se posicionar contra as cotas seja necessariamente racista. Mas é fato que o racista será contra quaisquer formas de inclusão e pluralidade. Para ele o preconceito simplesmente não existe, e só não estuda ou trabalha quem é vagabundo.
Os ministros do STF não pensam assim. Por unanimidade, decidiram pela legalidade da cota, com direito a discursos belíssimos que podem ser guardados nas paredes das grandes citações.
Foi só um primeiro (e necessário) passo: o reconhecimento das distorções ainda latentes de um país de privilégios. As reações vieram em sequencia: “mas e os outros grupos minoritários?”; “A decisão jogou para escanteio os brancos pobres”; “Estamos criando um tribunal racial no Brasil”; “Estamos criando privilégios para combater desigualdades”; “E o mérito?”; “E o estigma sobre os estudantes”.
Como estes, é possível usar vários argumentos com muito sentido para reagir à norma recém-referendada. Foi o que fez o DEM, que não é exatamente conhecido como um combatente das oligarquias e privilégios de um Brasil arcaico, ao contestar o sistema em vigor na UnB – uma experiência bem-sucedida, frise-se.
A reação ao sistema de cotas joga no ar a impressão de que a existência de muitos problemas é só um impeditivo para se corrigir outros; como se a soma de vetores apontando para cada injustiça no País devesse resultar unicamente na imobilidade.
De fato, é possível apontar uma série de problemas no sistema de cotas, como em vários sistemas que envolvam subjetividade e leis. O que preocupa, a esta altura do campeonato, não é a desconfiança sobre uma medida considerada paliativa. É o conforto com a ausência de propostas melhores.
Uma alternativa para as cotas raciais na universidade seriam as cotas sociais, que levariam em conta critérios como a origem e condição social do estudante. É uma possibilidade interessante. Ainda assim, a meu ver, subestima um outro fator: a manifestação de preconceito racial dentro desses lugares de origem.
Existem várias portas de saída para a pobreza. Nem todas estão imunes a boicotes: quem precisa de um financiamento, por exemplo, precisa ter a sorte de encontrar um gerente que vá com a sua cara. E é desnecessário lembrar que o Brasil não vai com a cara de negros – basta ver nas filas para adoção de bebês qual o perfil buscado pelos futuros papais.
O simples lance (o hipotético pedido de empréstimo ou de emprego) pode ser determinante garantir recursos para estudos, livros, cursos de língua, transporte e moradia (porque estudo dos filhos não se faz só com a matrícula). Ninguém chega à escola nem à universidade por simples vontade: há uma série de complicadores, como vergonha e perseguições, a pesar para uns e não para outros. Ninguém fica minimamente à vontade num lugar onde é chamado de “macaco” de tempos em tempos por colegas, vizinhos, professores, diretores, seguranças.
Durante décadas, o Brasil que pensou na libertação das correntes da escravidão ignorou as outras formas de exclusão de grupos que ficaram à margem na própria história.
A herança escravocrata é uma ferida aberta num país em que brancos e negros cometem os mesmos crimes, mas só uns são maioria nas prisões, e outros, maioria nas universidades – o topo de uma estrutura cujo caminho pede, muito mais que esforço, igualdade de condições para se alcançar. Muitos ficaram pelo caminho, e não foi por falta de esforço nem talento.
Só não vê quem não quer. Ou quem se esforça negando o racismo citando a profusão de mestiços num país onde todos se relacionam com todos – o que catalisou nossa identidade, diria Gilberto Freyre. Certo? Pois a Casa Grande segue inacessível. E, para reconhecer a Casa Grande, basta um passeio pelos lugares frequentados apenas por uma elite histórica – aconselho, inclusive, um passeio por redações de jornais e revistas.
No País da miscigenação, é parte da paisagem ver herdeiros da escravidão servindo ou pedindo para engraxar os sapatos. Quando acontece o contrário, são logo considerados “suspeitos”.
A capacidade de se indignar com um país de lugares cativos é um alento insuficiente para que as coisas mudem. Com as cotas, as coisas começam a mudar. Talvez não na estrutura, já que o preconceito é um dom inacabável.
Nos próximos anos, o sistema de cotas pode se mostrar insuficiente. Mas hoje é uma solução viável num contexto complexo, injusto, cheio de nuances e sofismas para justificar o injustificável.
É papel do Estado arbitrar sobre as injustiças nos espaços onde consegue alcançar – e o Supremo se mostrou sensível a esta constatação. Não é uma solução definitiva, mas um aceno para o futuro: como resumiu a ministra Rosa Weber, ao declarar seu voto, quando o negro se tornar visível na sociedade “política compensatória alguma será necessária”.
Ao decidir pela legalidade da cota hoje e agora, ela e os demais ministros do Supremo fizeram algo mais do que alimentar polêmicas restritas à dualidade “a favor” ou “contra”. Eles pavimentaram uma ponte em direção a uma realidade possível.